sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Defenestrando - Grandes Reportagens - ruído/mm

E o Felipe Gollnick postou no seu blog DEFENESTRANDO uma reportagem sobre o ruído/mm. O rapaz foi longe e escreveu um texto de altíssimo nível, após conversas com Liblik, Pill e Ramiro. Vale a pena conferir a reportagem, basta clicar aqui. De qualquer forma, postermos a matéria no nosso blog para inserirmos este importante trabalho no clipping do grupo.


São 20h00 do dia 15 de setembro de 2009. Embora o teatro do SESC da Esquina esteja com bom público, as luzes brancas que ficam acesas antes do show começar parecem estar mais escuras do que o normal. Essa suposta penumbra aliada ao frio de final de inverno parecem dar à noite uma combinação apropriada de soturnos fatores extra campo para que o ruído/mm (lê-se "ruído por milímetro") faça uma das mais marcantes apresentações de sua carreira: "A Última Praieira", nome com que o grupo batizou a ocasião, encerraria a série de shows feita pela banda desde o lançamento do elogiado disco "A Praia", em meados de 2008, e marcaria uma pausa em suas aparições públicas até que o próximo álbum fosse lançado (aquela acabaria não sendo a última – o grupo ainda tocaria algumas vezes entre o final de 2009 e o começo de 2010).


A apresentação vinha com ar solene não só por causa do glamour inerente a tocar em um teatro, mas porque pela primeira vez o ruído/mm faria seu som em um local que a banda considera apropriado para a apreciação de suas músicas: onde costumam se apresentar, em bares e inferninhos, há a inevitável distração, a cerveja, os amigos conversando; já em um teatro o espectador é praticamente obrigado a prestar atenção nas inúmeras texturas microscópicas de suas composições, construídas com o auxílio de múltiplas guitarras, de grande número de pedais e de um refinado piano, todos estes sustentados por uma cozinha de responsabilidade.


Quando as luzes apagam anunciando o início da apresentação, sobe sozinho ao palco o pianista Alexandre Liblik, que se senta em frente ao piano e anuncia que começará o show com uma cover. O fato não chamaria a atenção se a música não fosse de autoria de Robert Schumann, compositor do período romântico nascido na Alemanha no início do século XIX. A composição traz um clima de alegria contida, algo como se o seu autor soubesse que o mundo é um local incrível mas que por algum motivo não pode aproveitá-lo. Essa sensação parece ser um pouco do que o ruído transmite em suas músicas: alguns poucos suspiros de alegria em meio a um mar de dificuldades do que é tratar com a vida.


Durante as primeiras notas de Liblik surge André Ramiro, que com sua Les Paul e seus inúmeros pedais cria intervenções em cima da composição de Schumann, deixando-a menos erudita mas bem mais climática (especialidade do ruído/mm - criar climas, especialmente climas pesados e sombrios). Quando o primeiro número acaba sobe ao palco o resto da banda: Ricardo Pill, guitarrista e um dos maestros da orquestra; Giovani Farina (ou só Giva), o baterista; João Ricardo (ou João XXIII, como apresentava o programa do concerto), que ajuda nas guitarras e toca sanfona em uma das músicas; e Rafael Martins, concorrido guitarrista que à época tentava botar em um mesmo calendário não só as apresentações do ruído mas de outras bandas a que está relacionado, como Wandula e Copacabana Club. O baixo é visto circulando na mão de um ou de outro, conforme exige a música da vez.


Early years


Antes que finalmente tocasse em um teatro, houve uma extensa caminhada em que o ruído passou por muitos shows em vários inferninhos. Começando em 2003, com uma formação quase completamente diferente da atual (da qual hoje em dia só resta Pill como remanescente – mas ele não aceita muito bem essa determinação matemática, prefere atribuir a mesma característica a Ramiro pela sua importância dentro do grupo, mesmo este tendo entrado no staff algum tempo depois), suando com suas distorções em bares apertados e nostálgicos como o Salim.


Mais tarde, em 2004, a banda gravaria o seu primeiro EP, "Série Cinza", registro que já chamava a atenção ao apontar a sofisticação de suas composições instrumentais, mas que deixava transparecer a crueza de uma banda que ainda estava em seus primeiros anos de vida. No ano seguinte, já após a entrada de Ramiro, o ruído/mm liberou outro EP, "Índios Eletrônicos", totalmente diferente do anterior. De sonoridade livre, caseiro e gravado em apenas uma noite à base de improvisos, não há nele nenhuma melodia de fácil apreciação: pelo seu caráter experimental, algum ouvinte poderia afirmar que não há música nos 22 minutos do disco. Daí surgiu o hoje finado duo Índios Eletrônicos, formado por Ramiro e João (os que gostaram da experiência), que nesta tônica experimentalista gravou nove álbuns e teve até lançamentos na Holanda e em Portugal.


Em 2007 nasceu a Ruído Corporation, que consistia em festas mensais organizadas por Ramiro, nas quais o ruído/mm recebia no extinto Korova Bar da Avenida Batel bandas de Curitiba ou de outras cidades que de alguma forma se assemelhassem à sua proposta. Dessa maneira o grupo foi anfitrião de bandas como Je Rêve de Toi, Labirinto (SP), Fóssil (CE), Hurtmold (SP), Colorir (SC) e outras, sempre anunciadas em elegantes cartazes colecionáveis ilustrados por DW Ribatski, que show após show construiu neles uma sequência de imagens que narra as aventuras ultradimensionais de um casal desorientado.


Ao período que vai de 2003 até 2008, Pill dá o nome de "early years" do ruído, no qual segundo ele "tudo era uma panela de pressão" e que era difícil distinguir ali quem era o quê dentro da banda. O marco da mudança de fase seria o lançamento de A Praia, um dos mais bem-falados discos do rock instrumental brasileiro da última década: a mesma boa matéria prima apresentada em Série Cinza – que agora vinha polida e com menos urgência – rendeu-lhes um sétimo lugar no top 10 daquele ano da Trama Virtual; uma aparição na lista dos melhores do ano segundo o Scream & Yell; um apontamento na lista de melhores da década segundo Alexandre Matias, do blog Trabalho Sujo; e até uma menção em entrevista do Pitchfork com David Byrne. Fora inúmeras citações em outros sites e blogs.


Instrumental?


Aliado a grupos como Pata de Elefante, Macaco Bong, Hurtmold, Guizado e outras, o ruído/mm está no meio de uma agitação que está trazendo o rock instrumental ao gosto da crítica especializada e do público que consome o gênero. Ou, numa visão menos otimista, se não traz ao gosto, pelo menos faz saber que há rock instrumental de qualidade sendo produzido no país. Mas localizar o som destes curitibanos dentro de um gênero e dar a ele uma característica específica é questão mais delicada do que parece.

Não é novidade que uma tarefa difícil é definir o ruído em um subgênero (pós-rock, art-rock, shoegaze etc). Mas a banda avisa para ter cautela até na hora de classificá-la como instrumental. Claro, suas músicas não são cantadas e podem portanto serem taxadas de instrumentais, mas Liblik explica: "se você for ver essas bandas instrumentais todas, vai ver que elas são muito diferentes umas das outras. Talvez a gente tenha menos afinidade com elas do que com uma banda que canta." A sonoridade de seu grupo estaria mais próxima então da curitibana Wandula (enfeitada com a voz suave de Edith de Camargo) do que de grupos como a Pata de Elefante.


Então como eles mesmos definem seu estilo?, a pergunta surge, óbvia. "Como que a gente define? Boa sorte aí" diz Pill, jogando para longe a responsabilidade da tarefa. "Eu não tenho problema nenhum com pós-rock", referindo-se ao que geralmente lhes é atribuído, "mas a gente vai botar um disco novo aí e vamos morder esse tema de volta."


Por milímetro


Quem ouve os mais de nove minutos das músicas "Praieira" ou "A Praia" (os carros-chefe do lançamento de 2008) atentando para os inúmeros detalhes contidos em cada segundo de execução pode imaginar que uma ou outra parte é natural improvisação. Não é. Basta perceber que em suas apresentações a banda executa suas composições praticamente da mesma maneira que as executou da vez anterior. "Nesse aspecto o ruído não é jazz, o ruído não é improviso, é milimétrico" diz Liblik.

Esse falso aspecto de improviso é uma das inúmeras faces a serem encontradas nas músicas do grupo, compostas e executadas sob a influência de um fator chamado Gestalt. O termo está ligado à psicologia e dá nome a uma teoria que sugere que fenômenos psicológicos distintos podem formar um conjunto autônomo e indivisível: a sonoridade do ruído/mm seria construída a partir da expressão das individualidades de cada um de seus músicos, que acabariam se misturando para criar uma unidade não separável que soe bem a todos.


Mas fica difícil a criação de uma unidade quando o que se tem é um grupo cuja escalação é volátil. À parte o que Ramiro chama de quarteto estrutural do ruído (formado por ele, Pill, Giva e Liblik), os demais integrantes estão sempre entrando e saindo da banda: veja-se a saída, tempos atrás, do baixista Rubens K e, mais recentemente, de João; a partida de Rafael Martins devido aos compromissos com o Copacabana Club; e a entrada, há pouco, de Rafael Panke, do Delta Cockers. O obstáculo parece ser superado através da escolha precisa de músicos que anteriormente já saibam muito bem qual é a proposta do grupo, mas também pela liderança de Pill e Ramiro que, seja através de pitacos ou de relações de amizade, direcionam com cuidado os novatos até as terras coloniais.


Essa colocação non-sense até faz sentido: a Trama Virtual, pela voz de Claudio Szynkier, chama o ruído de “(re)colonizadores eslavos da vanguarda em Curitiba”. Uma banda que aceita tal adjetivo e que também traz para o seu cotidiano um termo relativo à psicologia talvez tenha um parafuso a mais. Lembrando, mais além, de suas músicas andarilhas, dá para pensar em excentricidade ou lisergia. Em entrevistas, o grupo faz questão de que algumas de suas respostas não sejam óbvias (exemplo: quando pedi explicações sobre Gestalt, Pill respondeu apenas "é, 2+2=5, né cara"), mas essa qualidade de maluquice calculada está implícita na sua musicalidade, e a identifica. Os tubos retorcidos flutuantes que eram a única decoração no palco da apresentação no teatro do SESC da Esquina também ilustram isso.

Um último aspecto identificável nos infindáveis quilômetros que o ruído tece em suas paisagens sonoras de canos retorcidos e montanhas nebulosas, é que cada milímetro tem um impacto, que pode ser nostálgico, lisérgico (como dito), intelectual, ou o que for. Mas destes, hoje o que chama a atenção é o físico: depois de quase sete anos de overdrives e distorções ruidosas, alguns dos ouvidos da banda talvez já estejam começando a ficar cansados de tantos barulhos pesados. A entrada de Liblik nos teclados, em 2008, veio como uma espécie de antídoto espontâneo e natural, já que este trouxe a erudição citada alguns parágrafos acima e algum refinamento: "é por isso que tem piano agora cara, pra fazer bem para os ouvidos" diz ele brincando, saudável.


Entre novas e velhas referências, saúde e inúmeros outros fatores, o ruído/mm entra agora em estúdio para gravar o seu próximo registro. Resta esperar que, de trás de alguma colina cinzenta e distante, apareça um novo disco iluminado, climático como o anterior, talvez sombrio, contraditório, seja saudável ou não. Mas que marque quem o ouça, tanto quanto marcou quem ouviu e enxergou A Praia.


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Sabe quando você está em casa, sossegado e tranquilo, assistindo a um filminho no DVD, no conforto do seu sofá? Aí o filme acaba mas você ainda está no clima dele, vai aos extras e assiste às entrevistas com todas as pessoas que participaram do filme, do diretor ao segurança? As Grandes Reportagens também são mais ou menos assim: vindo por aqui você tem acesso ao pacotão defenestrado que traz as melhores partes da entrevista que fiz com Ramiro, Pill e Liblik. Coisa fina, pra você que ainda quer ler mais. E o download ainda é levinho (180kb), já que é só texto. Vai lá.

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