"O ruído/mm (lê-se 'ruído por milímetro') é uma banda barulhenta de Curitiba. Será que isso ainda diz alguma coisa? Sem vocais, o som da banda está em algum lugar entre o shoegaze, o pós-rock e o art-rock. Novamente barulho. E dos bons. No segundo semestre de 2011, o grupo lançou seu terceiro registro de estúdio: a 'Introdução à Cortina do Sótão', 12º melhor disco do ano passado segundo os votantes do Prêmio Scream & Yell.
'Introdução à Cortina do Sótão' é sucessor de 'A Praia', elogiado lançamento de 2008 com o qual a banda figurou em diversas listas de final de ano: entre elas, um sétimo lugar no top 10 da daquele ano na Trama Virtual; uma primeira aparição entre os 50 discos mais votados neste Scream & Yell; e um dos 100 melhores discos da década segundo Alexandre Matias, do blog Trabalho Sujo. 'A Praia' ainda conseguiu o feito de ser mencionado em uma entrevista do Pitchfork com David Byrne.
Menos barulhento e mais ensolarado do que o disco que consagrou/apresentou o ruído/mm, 'Introdução à Cortina do Sótão' (lançado e liberado para download pelo selo Sinewave. Baixe aqui) fez um pouco menos estardalhaço pela internet, mas ainda assim demonstrou um nítido amadurecimento do grupo, que, entre um lançamento e outro, passou por diversas mudanças em sua formação e sofreu um processo natural que resultou em músicas menos urgentes e mais sossegadas.
Formado por André Ramiro (guitarra), Pill (guitarra), Giva (bateria), Alexandre Liblik (piano) e Rafael Panke (baixo), desde o começo de 2011 o grupo lida com o fato de Ramiro morar no Rio de Janeiro e o resto da banda em Curitiba. Em uma entrevista realizada após um jogo do Corinthians, os integrantes da banda deixaram as idéias correrem sozinhas. Da história da velhinha italiana ao tempo de criação ('Se você tem um relógio no teu rabo você não vai ter tempo pra amadurecer as coisas'), um pouco de tudo foi comentado. Divirta-se.
O que é a cortina do sótão?
Pill: O disco se chama 'Introdução à Cortina do Sótão' porque ele não é exatamente um disco sobre o sótão. Eu acho que é um disco que mostra um pouquinho dessa faceta, uma coisa um pouco mais ensolarada, entende? Mas ainda assim ambígua. Na nossa representação, o sótão é bem mais light que o porão. O porão é um lugar bem mais pesado, sempre, e o sótão já é um lugar que pode ser mais de filosofia, de devaneio. Mas às vezes ele pode ser lugar pesado também.
Liblik: O sótão está mais para Baudelaire, e o porão está mais para Edgar Allan Poe.
A introdução é ao sótão ou à cortina do sótão?
Panke: A cortina é o que revela o sótão.
Pill: A cortina é a parte que revela tanto a parte de fora como a de dentro. Ela é a separação: você a fecha e você está na penumbra. Acho que é mais ou menos por aí.
Mas a cortina fica apenas em um canto do sótão…
Liblik: É que a cortina tem mais um sentido de desvelar, ela serve de anteparo.
Pill: É uma cortina, um véu. Aquela coisa de que a noiva revela o rosto para o marido… tinha essa coisa da noiva tirar o véu.
Panke: Gosto daquela história da velhinha italiana com um baú cheio de coisas do marido morto, e ela guarda tudo isso no sótão. E quando ela vai fazer a limpeza, ela puxa a cortina para o lado e vem aquele primeiro raio de luz com a poeira flutuando no ar. Não é tanto pela história, mas é mais pela sensação que você tem.
Pill: Mas faz diferença abrir ou fechar a cortina. Se você está no seu quarto, você só vê as poeirinhas flutuando se estiver fazendo sol. Se não tem luz, você não vê. É por aí: a gente saiu um pouco da penumbra d’”A Praia”, que é uma praia, mas ninguém que ouve aquele disco pensa que essa praia é Copacabana num dia de sol. Acho que o sol é mais ou menos por aí. A cortina é uma parte muito importante do sótão. Ao contrário do porão, que não tem cortina.
O quanto da vida pessoal de vocês está nas músicas do álbum?
Liblik: Esse disco é uma celebração à vida, velho. Até porque é um disco em que todos nós estamos mais resolvidos. Se você for ver, o Ramiro e o Pill estão numa fase boa, o Giva sempre está numa fase boa, o Panke foi um achado maravilhoso para a banda… Pô, eu também, é meu primeiro disco com o ruído e estou numa fase boa agora. Dentro da nossa possibilidade de sermos menos pessimistas, esse é um disco alegre. Agora, não dá pra deixar de ser um pouquinho pessimista. O mundo é uma merda, enfim.
Pill: Em 2008 a gente estava com o disco 'A Praia' quase pronto. Estávamos prontos para fazer os shows. Mas alguns integrantes saíram e entrou um monte de gente nova na banda. Então tivemos conflitos pra caralho, e a 'Introdução…' foi uma resolução desse conflito, no sentido de 'ok, nós somos uma banda de volta.' Agora a gente voltou a ser uma unidade.
'Introdução à Cortina do Sótão' estava prometido desde 2009. Por que demorou tanto para ele sair?
Pill: Somos uma banda de volta e agora queremos ser uma unidade, onde as pessoas se entendem. E, desde 'A Praia', a gente passou por um período caótico pra caralho. Se o Giva sair da banda não tem quem toque bateria. Vai ter que chamar o cara profissional pra tirar as linhas e não perdermos dois anos ensaiando bateria.
Liblik: Nós não somos profissionais, entendeu? O Giva não tem um substituto, o
Pill e o Panke não têm substitutos.
Pill e o Panke não têm substitutos.
Pill: Você entende? A gente queria ter lançado o disco antes, só que o conjunto não estava batendo. Por uma pessoa ter saído da banda, botamos outras três. Por isso que acho que ser profissional é mais difícil, porque então você não tem muito tempo pra balela, entendeu? Se você chegar lá na banda da Amy Winehouse, não interessa se o cara estava mal, aquele era o emprego do cara. E a gente não tem essa pira de emprego.
Liblik: Essa é a diferença da arte para a música em geral. A arte não tem o tempo do tempo, ela acontece quando tem que acontecer. Com toda a pretensão que a gente possa dizer, o nosso tempo não é o tempo do hype. É o tempo que tem que rolar. Pode demorar um ano ou dez anos, mas vai rolar na hora que tiver que rolar. Quando rola, rola, e a gente está desapegado do relógio. Pau no cu do relógio. E esse é o problema do mundo atual: tá todo mundo preocupado com o relógio, preocupado em apresentar alguma coisa. Isso não adianta nada: se você tem um relógio no teu rabo você não vai ter tempo pra amadurecer as coisas. O amadurecimento só acontece sem o cronômetro apitando.
Panke: As coisas acontecem muito rápido no mundo da música. É muita informação e a crista da onda passa muito rápido. Mas se a gente se preocupar com isso, nós não vamos fazer o som do jeito que a gente acha que tem que ser.
Vocês enfrentaram vários problemas pelo caminho, como essas mudanças seguidas na formação. Isso teve influência no resultado final das músicas?
Panke: Assim como cada problema pode ser uma tempestade representada em algum trecho de alguma música, quando rolam essas coisas do tipo o Ramiro ter que se mudar para o Rio, isso se manifesta também à medida em que isso traz um pouco de lucidez ao trabalho. Porque tem esse período de loucura, de criação, e as coisas surgem. Mas quando surge um obstáculo desses, e tomamos aquele choque de realidade, isso acaba interferindo na maneira como a banda vai agir e como as coisas vão sair. Se a gente não tivesse sentido esse choque de realidade [da mudança do Ramiro para o Rio], esse disco não teria saído. Mesmo saindo atrasado, a gente poderia dizer que o disco nasceu precoce. Mas essas coisas acabam influenciando e ajudando a formar o resultado final.
Pill: Acho até que a gente está tentando aprender a fazer o negócio de uma forma mais rápida, mas não no sentido de acelerar o processo e sim de desperdiçar menos tempo. Às vezes acho que a distância do Ramiro fez a gente valorizar o tempo. Se existe alguma coisa que a gente possa fazer antes de entrar no estúdio para não ficar lá pirando, vamos fazer.
Panke: Acho que é até bom, porque se não rolasse essas coisas não teríamos lucidez nunca.
Giva: O Ramiro está no Rio. Ele está longe, mas está perto. A gente troca e-mail todo dia. E ele sempre vem pra cá, a gente ensaia, e ele continua fazendo os contatos que sempre fez. Eu, pessoalmente, achei que essa mudança ia foder tudo. Mas ele falou: 'vocês não podem acabar a banda, eu ainda tô aqui!'.
Pill: Confesso que pensei que ia ser… não achei que o Ramiro ia ter tanta… eu sei que ele é viciado, que ele gosta, mas não achei que ela ia ter tanto saco de vir para Curitiba só para ensaiar.
Liblik: Para o cara morar no Rio e passar o feriado em Curitiba, com quatro dias chovendo, o cara tem que gostar de rock mesmo. Porque puta que o pariu, quatro dias em Curitiba é um tiro na cabeça!
Como vocês fazem para ensaiar sem ele?
Liblik: Ah, a gente só faz barulho mesmo!
Pill: A gente deixa o espaço dele ali. Às vezes ponho um delay a mais só para fingir que o cara tá lá.
Liblik: De vez em quando eu começo a fazer as partes dele no teclado e levo uns xingões.
Pill: É que ele quer substituir o Ramiro nos ensaios, e eu também.
Giva: Um exemplo de que isso não é um problema foi o nosso show no John Bull Pub [em outubro de 2011], para o qual a gente ensaiou sem o Ramiro, e foi um show do caralho. Um dos [nossos] melhores do ano.
Qual foi o impacto do piano na banda?
Pill: Cara… se a gente cortasse uns três dedos do Liblik nós teríamos menos problemas. [risos] Mas acho que cada vez mais isso está no nosso espírito. É um parto para sair cada música porque cada um quer uma coisa diferente. Mas de certa forma a gente tinha que ter um piano na banda.
O piano ajudou a deixar as músicas mais ensolaradas?
Giva: Ajudou, ele deu um brilho.
Panke: [imitando Liblik] Faz uns acordes maiores!
Pill: Se fosse sem piano, iria ser mais ensolarado do mesmo jeito. Só que é difícil falar assim. O piano tem uma expressão totalmente diferente do que uma guitarra. Há um tempo atrás, a gente queria fazer um negócio em que não precisássemos nos matar de fazer noise. O piano entrou em um momento que a gente tava pronto para caminhar nessa direção.
Liblik: Alguém me falou esses dias que estraguei o ruído, que a banda não está mais dissonante… Vão tudo se foder! Pra mim tem tudo que ter dissonância e tocar tudo errado mesmo. Essa história de que o piano é bonitinho… bonitinho é o meu pau. [risos]
Pill: Infelizmente, a culpa da dissonância acho que é mais minha do que do Liblik.
Liblik: Não nenho nada de contra a dissonância, pelo contrário. É ruído por milímetro, caralho. Se tem piano, tem que ser ruidoso do mesmo jeito, nem que eu tenha que tocar com o cotovelo.
Panke: Piano pegando fogo.
Liblik: Exatamente, Jerry Lee Lewis total.
Vocês parecem conseguir representar parábolas da vida nas músicas da 'Introdução…'. Existem as fases mais complicadas, em que surgem muitos problemas e nas quais parece que você só se dá mal. Mas depois isso tudo passa, de repente o sol aparece e tudo fica mais tranquilo.
Pill: É por isso que eu não gosto que o ruído seja chamado de banda instrumental. Eu acho que você não deve chamar ninguém de banda instrumental. Até entendo que você precisa classificar nossas músicas como instrumentais, mas você não precisa falar que música erudita é instrumental. É a música do Fulano e pronto. O jazz também, você não fala que vai ouvir um jazz instrumental. Você vai ouvir o Miles Davis, e acho que é por aí.
Liblik: Nós somos contadores de histórias. Ademais, a gente há de concordar: vivemos num mundo de excesso de imagens, do excesso de palavras, do excesso de tudo. Tem que vir alguém e cortar um pouquinho isso aí. O som do ruído é para fazer você parar, desligar um pouquinho as palavras, as imagens e fechar um pouquinho seus olhos. Mas é só isso que a gente quer. Se fosse pra cantar uma canção bonitinha ou mostrar uma imagem bonitinha, já existem um milhão de pessoas que fazem isso melhor do que a gente."
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